Leio no facebook uma mensagem postada por Jandira Feghali no dia 16 de março de 2020: “Ele comprou 17.000 garrafas de álcool em gel pra vender 15 vezes mais caro”. Segue a pergunta: “Você chama isso de que?”. É a ilustração imagética do lado ordinário e verme do ambivalente, paradoxal e contraditório bicho homem. Shakespeare e Machado de Assis, dentre outros sábios escritores, romancearam sobre as ambiguidades humanas. A fera humana que tira proveito da dor e da miséria do outro, é capaz de compor uma sinfonia. O assassino tocador de flauta. Fascinante e aterrorizante. Hitler e Irmã Dulce nas duas faces da mesma criatura humana. Lucrar às custas da tragédia alheia, é uma prática abominável. Infelizmente, é ação recorrente na história da humanidade. Um conhecido exemplo brasileiro é a genocida indústria da seca, no Nordeste. Palavras iniciais para chegar ao dramático contexto atual do “Novo Coronavírus (COVID-19)”. Quarentena e distanciamento social voltam a ser expressões rotineiras de um cenário medroso, arriscado e incerto. Mais uma vez a história desvela a nossa vulnerabilidade em um processo histórico de progressos e regressões. Robótica e medievalismos são vizinhos nos espetáculos do cotidiano do século XXI. Pandemia no mundo “globarbarizado”. Em tempos pestilentos, na privacidade do lar, releio o romance francês A PESTE, de Albert Camus (1913-1960). Uma densa representação literária para uma situação conjuntural de “aprisionamento”. Na companhia das letras, reflito a partir de um texto marcado pelas densidades filosófica, antropológica e sociológica sobre os comportamentos coletivos em conjunturas pestilentas. A palavra peste apresenta potencial para ser usada de modo metafórico. Pode, sob uma sutileza linguística, estar fazendo referência a um pestilento estado ditatorial. Na “guerra”, na “luta”, no “combate” ao coronavírus, a linguagem é bélica, armamentista. Susan Sontag, em “A Doença como Metáfora”, aborda a cidadania onerosa vivida em virulentos contextos. “Assim vivemos agora”. Com o companheiro Camus, somos chamados a pensar sobre a ética da responsabilidade em um momento histórico no qual, uma doença particular, coloca a todos (as) nós em uma mesma embarcação. Solidariedade é termo valorizado na resposta da sociedade civil aos surtos epidêmicos. Seleciono um provocativo e atemporal fragmento do texto literário de Camus. Um espelho para quem hoje está quadruplicando o valor do álcool em gel:
“Havia, no entanto, outros motivos de inquietação, em consequência das dificuldades de abastecimento que cresciam com o tempo. A especulação interviera e oferecia, a preços fabulosos, os gêneros de primeira necessidade que faltavam no mercado habitual. As famílias pobres viam-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada. Ao passo que a peste, pela imparcialidade eficaz com que exercia seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos. Ao contrário, tornava mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça. Restava, é bem verdade, a igualdade irrepreensível da morte, mas essa ninguém queria. Os pobres que sofriam de fome pensavam, com mais nostalgia ainda, nas cidades e nos campos vizinhos, onde a vida era livre e o pão não era caro”.