Olá pessoal
Li com entusiasmo os testemunhos de vocês.
Teve muita autojustificativa (como sempre tem...),
um pouco de rivalidade com professor (que pode ser canalizada para o desenvolvimento de vocês),
alguma confissão pessoal (a despeito de serem orientados do caráter público do que estavam escrevendo. Daí que entendi ou presumi que fosse um caso em que o pessoal se tonar político, da polis, da comunicação em praça pública)
talvez um ou outro comentário passível de um dia gerar constrangimento (vocês que arquem com elas no conjunto cadernado que devolvi para a turma).
E tem sobretudo bastante coisa legal, no sentido do que pedi para vocês.
Comento brevemente alguma delas abaixo, sob a prerrogativa de devolutiva para a turma.
Condução das aulas: as aulas começaram expositivas, mas não precisou de muito tempo para perceber que a turma rendia mais nos debates.
A leitura de textos serve para partirmos do debate de algum lugar. Se não acontece, podemos ficar numa situação pouco produtiva: o professor na incômoda posição de “transmitir conteúdo”, de ensinar verdades ou o jeito certo de pensar, a turma e as(os) alunas(os), por sua vez, na posição de assentir, talvez absorver alguma coisa, que seria deglutida e talvez eliminada com o frango do R.U., ou ignorar, porque não estamos habitando os paradoxos que impulsionam e condicionam o pensamento. Se a psicologia requer contradição para existir enquanto prática social, o pensamento requer paradoxo. Caso contrário ficamos muito presos à doxa, à opinião pessoal – que sinceramente, não interessa a ninguém. O pensamento nos interessa, levar o pensamento à frente implica alimentar os paradoxos, ficar com as questões e perguntas, antes de se afobar na busca de respostas.
Centrar as aulas no debate compromete o raciocínio linear, o seguimento da ordem planejada para a aula e da sequência apresentada nos slides.
Por outro lado, favorece raciocínio crítico, autorreflexão, “semancol” e honestidade intelectual. Ademais, exige arcos de raciocínio mais longos – que eventualmente podem fazer alguém se perder e, uma vez se perdendo, se angustiar com a suspensão do sentido que tem como único fundamento a doxa, a opinião, encarnada na pergunta sincera: “Tá prof., mas o que é que eu tenho que pensar pra pensar certo?”
Essa pergunta de fundo indica que estamos abdicando da autonomia para regozijarmos com o que nos dizem que é certo... e tem tanto clickbait pra isso já: “seja isso, seja aquilo”.
Um arco maior de raciocínio requer pensadoras autônomas, capazes de conduzir o pensamento através de processos e questões que são conceitualmente complexas.
Depois de amanhã, ou daqui uns 5 anos, vocês serão cobrados a lerem e intervirem em ato junto a processos de subjetivação, que têm muitas causas, motores e desdobramentos, que nem todo psicologismo (que é a tendência desonesta de forçar uma barra para explicar coisas irredutíveis à psicologia com estratagemas psi) conseguiria abarcar. Nesse dia, tenho certeza que vocês vão sentir saudades de ler um textinho, que está ao alcance das mãos e da extensão dela, dos celulares, estático e circunscritamente polissêmico – o que boa parte do nosso campo de trabalho e pensamento não é.
Aliás, aqui já comentei sobre “ler textos” e sobre a palavra mais usada nos testemunhos de vocês, que foi Complexidade.
A Teoria da Complexidade (um google vai levar vocês a Edgar Morin) assume que a realidade e seus processos são irredutíveis a qualquer linearidade. Eles são multideterminados, sub-determinados ou mesmo indeterminados, são fractais e difusos.
Tem um bom filme sobre o tema: O Ponto de Mutação
https://www.youtube.com/watch?v=72JHi0eEvJA
Para quem gosta de vídeos mais curtos, segue um trecho de O Ponto de Mutação que diz sobre a Complexidade da vida e dos saberes:
https://www.youtube.com/watch?v=Q4deTnqje6I
No que se refere ao uso de IA, esperava algo a mais de vocês, mas essa conversa continua em outras searas.
Fiquei intrigado com certo desabono rasteiro das IA’s por gente que passa tanto tempo com celulares na mão como nós.
Me lembrou um pouco da música de Mundo Livre S/A - Computadores fazem arte
https://fastcompanybrasil.com/coluna/porto-digital-e-os-30-anos-do-manguebeat-a-poderosa-mistura-de-arte-tecnologia-e-inovacao/
No mais, ficou muita coisa pra um papo olho no olho. Estejam bem-vindos e questionem, interroguem seus professores, estamos aqui pra auxiliar vocês, protagonistas dos processos ensino-aprendizagem, a caminharem por esse grande campo de dispersão que é a Psicologia, campo definido muito mais por suas práticas sociais, pelos efeitos que produz que por qualquer academicismo, igrejinha-abordagem ou egotrip nossa.
E já que senti falta de um pouco de poesia em nossas aulas, deixo vocês com uma tradução que fiz para um poeminha do Neruda:
Muitos somos – P. Neruda
Das muitas pessoas que sou, e nós somos,
não podemos nos assentar em apenas uma.
Elas estão perdidos para mim dentro das capas das roupas,
elas tomaram o rumo de outra cidade.
Quando tudo parece estar bem
para que eu me mostre como uma pessoa inteligente,
o louco que eu mantinha encerrado em minha pessoa toma minha fala e ocupa minha boca.
Em outras ocasiões, quando estou perdido
entre pessoas distintas
e chamo meu eu corajoso
um covarde completamente desconhecido vem sacudir meu pobre esqueleto com mil pequenas reservas
Quando uma casa digna explode em chamas,
ao invés do bombeiro que eu chamo,
irrompe em cena um incendiário
E ele sou eu.
Não há nada que eu possa fazer.
O que posso fazer para escolher a mim mesmo?
Como posso me compor?
Todos os livros que li
idealizam figuras de heróis brilhantes.
Sempre cheios de auto-confiança.
Eu morro de inveja deles e,
em filmes em que balas voam ao vento,
Sinto inveja dos cowboys,
Admiro até os cavalos.
Mas quando eu chamo meu eu corajoso,
lá vem um velho preguiçoso,
e assim, nunca sei quem eu sou,
ou quantos eu sou, ou quem estará sendo.
Eu gostaria de ser capaz de tocar um sino
e chamar meu eu real, o verdadeiro eu,
pois se eu realmente preciso do meu próprio ser,
não posso deixá-lo desaparecer.
Quando estou escrevendo, estou longe
quando retorno, já me fui.
Eu gostaria de ver a mesma coisa acontecer
a outras pessoas como ocorre comigo,
para ver se tantos são como eu,
e quantos deles sentem-se da mesma forma consigo mesmos.
Quando este problema for totalmente explorado
vou me treinar tão bem nessas coisas que
quando eu tentar explicar meus problemas,
falarei não de um ser, mas de uma geografia.
-------------------
Ficamos por aqui,
Cuidem do coração que a cabeça aguenta.
E deem um descanso para seus celulares de vez em quando!
Um forte abraço.