virtude, Alasdair MacIntyre, ética
A tematização da ética tornou-se central no debate contemporâneo em diversas esferas da vida social, tanto nas discussões cotidianas, que envolvem a significação das ações humanas dentro da cultura e a solidificação de valores que as fundamentem, quanto no cenário filosófico, na busca por fundamentação de uma filosofia moral que dê conta do universo moral contemporâneo e solidifique uma racionalidade.
O debate moral contemporâneo se encontra marcado por filosofias morais adversas entre si – éticas modernas demarcadas pela tentativa iluminista de justificação racional da moralidade e éticas contemporâneas que tecem uma crítica à ética moderna. O cenário expresso por esse debate é de um grande desacordo, dado o antagonismo e a incomensurabilidade das perspectivas filosóficas em discussão, e, por muitas vezes, a conclusão a que se chega é de que existe uma ausência de critério racional que possa garantir a racionalidade na moral e na ética.
Mais especificamente vemos ser travado um debate em filosofia moral e política entre comunitaristas e liberais. A perspectiva liberal, fomentada pela tradição do Iluminismo, sustenta a possibilidade de uma política de direitos, em detrimento de uma política do bem comum que os comunitaristas defendem, tendo por base as liberdades individuais e o potencial de autocriação dos indivíduos, assim como rejeita a dimensão teleológica do agente moral e a possibilidade de fundamento metafísico e teleológico do mundo e do ser humano.
O individualismo liberal, a distância entre o âmbito público e o privado e a afirmação da ausência de qualquer racionalidade que possa justificar a moralidade, se expressam nas afirmações de Richard Rorty quando ele nos diz que:
(...) a perspectiva segundo a qual a ideia de uma componente humana central e universal chamada ‘razão’, faculdade que seria a fonte das nossas obrigações morais, embora tenha sido muito útil na criação das sociedades modernas, é agora uma ideia que podemos dispensar. (...) nossas responsabilidades para com os outros constituem apenas o lado público da nossa vida, lado que se encontra em concorrência com as nossas afecções privadas e com as tentativas privadas de autocriação e que não tem nenhuma prioridade automática sobre esses motivos privados.[1]
Por sua vez, John Rawls considera a justiça como uma questão de distribuição de direitos e benefícios da cooperação, pressupondo a autonomia do indivíduo como valor central numa democracia. A noção de indivíduo pressuposta por ele é a de um sujeito racional e livre que encarna sua natureza universal. Para Rawls,
uma pessoa moral é um sujeito que tem os objetivos que escolheu, e sua preferência fundamental é por condições que lhe possibilitaram estruturar um modo de vida que expresse a sua natureza de ser racional livre e igual tanto quanto o permitam as circunstâncias.”[2]
Contrapondo-se a esta visão, os comunitaristas vêem o liberalismo e o individualismo da sociedade ocidental moderna como perspectivas reducionistas e atomizadoras que se opõem às noções de bem público, vínculos coletivos, tradição, virtude e a visão da comunidade como eixo central para a constituição da vida moral e política.
As éticas modernas são acusadas de compreenderem “a questão ética como o problema da determinação da ação justa e correta, e de suas regras, e da justificação do dever e da obrigação (...) de seguir determinadas regras”[3]. As principais críticas tecidas por estudiosos a estas reflexões diz respeito à ausência do tema da virtude, o reducionismo do sujeito moral a um puro querer que decide; o estabelecimento de limites reduzido à esfera das liberdades individuais; e a universalização e naturalização das normas morais.
Integrando o debate filosófico acerca da moralidade, Alasdair MacIntyre afirma que na modernidade a vida humana foi dividida em fragmentos regulados por normas específicas e caracterizados por comportamentos próprios. O público e o privado foram separados, o trabalho afastado do lazer, a vida pessoal afastada da profissional e até momentos de desenvolvimento da vida foram separados entre si – como a infância apartada da velhice. Assim, perdeu-se a noção e a experimentação da unidade da vida humana, o indivíduo passou a experimentar a peculiaridade de fases, etapas, momentos que não são assumidos como um todo.[4]
Por sua vez, a filosofia e a sociologia modernas pensam a vida humana de maneira atomista – a vida como uma seqüência de atos isolados – e separam o indivíduo dos papéis que ele interpreta. Um eu nestes termos não dá lugar para o exercício das virtudes, uma vez que as virtudes genuínas são disposições a serem exercitadas e manifestadas em todas as situações possíveis da vida do indivíduo.
O tipo de sujeito pressuposto pela ética das virtudes exige a visão da vida como uma unidade, assim como um telos que, compartilhado no interior de uma comunidade ética e política, forneça o sentido da vida humana. Este sujeito é diferente do indivíduo moderno. O valor do indivíduo se tornou um valor dominante na cultura ocidental moderna e contemporânea. Carvalho Filho chega a afirmar que o individualismo é um “defeito genético” no código cultural moderno, sendo o paradigma dominante no Ocidente e, a partir da modernidade, o responsável pela maior parte dos nossos problemas políticos e morais.[5]
A filosofia moral e política liberal contribuiu para a solidificação do individualismo ocidental, e este, por sua vez contribuiu para a degradação do conceito de virtude. No entanto, MacIntyre avalia que o individualismo liberal não conseguiu estabelecer um posicionamento racional que fosse convincente e que garanta inteligibilidade à situação da moral contemporânea, e propõe uma retomada do conceito de virtude – pensada a partir da tradição moral aristotélica – e do sujeito moral concebido a partir do seu pertencimento a uma comunidade que partilhe uma concepção comum de bem.
Alasdair MacIntyre empreende em sua filosofia moral um projeto de revisão histórica e crítica da tradição de pensamento moral ocidental. Este denuncia o naufrágio da ética moderna e propõe como alternativa uma reapropriação da tradição aristotélico-tomista e a retomada da virtude numa perspectiva teleológica de caráter social, resgatando o conceito de tradição como constituída e constitutiva de uma pesquisa racional, e configurando o homem a partir do reconhecimento de sua condição animal e de sua vulnerabilidade e dependência.
Assim, MacIntyre reconstrói a história da virtude desde seu florescimento nas sociedades e filosofias antigas, passando pelas reduções que sofreu nas éticas modernas até chegar a sua retomada na forma de reapropriação de uma perspectiva conceitual antiga mediante a crítica do próprio modo de colocação do problema moral na modernidade. Neste sentido,
(...) a obra de A. MacIntyre tem o mérito não só de rever sistematicamente os pressupostos das posições éticas em desacordo na cultura ocidental, mas também revela-se assaz instrutiva e programática: resgatando o ponto de vista aristotélico, A. MacIntyre encontra o ambiente natural para uma teoria da virtude, isto é, redescobre como a virtude se configurou antes das reduções que sofreu, para sobreviver desnaturada dentro do esquema da ética moderna. Sendo assim, o filósofo não poderá limitar-se a inserir tout court a virtude e o dever no esquema da ética moderna, mas sim rever criticamente os próprios termos com os quais a ética moderna coloca o problema moral.[6]
A discussão destes pontos centrais e a construção de uma Teoria das virtudes é realizada por Alasdair MacIntyre no conjunto de sua obra por meio de um diálogo com a tradição e pela revisão de seus próprios posicionamentos em um movimento de reflexão e crítica da literatura filosófica e da realidade social. Esse projeto filosófico de MacIntyre está condensado, principalmente, na trilogia After Virtue: a study in Moral Theory (1981); Whose Justice? Which Rationality? (1988) e Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopedia, Genealogy and Tradition (1990); e na obra Dependent Rational Animals: why human beings need the virtues (1999).[7]
Buscamos em nosso trabalho a análise dos argumentos que MacIntyre lança mão ao adotar a tradição moral aristotélico-tomista, tendo em vista identificar como os conceitos de “virtude” e “sujeito moral” estão caracterizados e fundamentados em sua filosofia, assim como delimitar o alcance de sua crítica à moralidade moderna, expressa pelo liberalismo e emotivismo e avaliar as estruturas sociais e políticas que MacIntyre propõe como locus contemporâneo para o exercício das virtudes e o desenvolvimento do sujeito moral que a ética das virtudes pressupõe.
No primeiro capítulo do nosso trabalho apresentamos a crítica de MacIntyre à filosofia moral moderna e sua proposta de retomada da tradição aristotélico-tomista, identificando como ele recoloca o conceito de tradição de pesquisa racional como chave para retomada da ética das virtudes e a tradição de pesquisa aristotélico-tomista como possibilidade de solução dos problemas que a filosofia moral moderna e iluminista colocaram para a contemporaneidade.
No segundo capítulo, caracterizaremos o debate liberalismo versus comunitarismo, destacando a posição de MacIntyre, enquanto crítico do liberalismo, defensor da ética das virtudes e da comunidade enquanto forma de organização social alternativa ao modelo de estado moderno. Vale ressaltar que MacIntyre enfaticamente faz uma crítica ao liberalismo, mas não aceita a denominação de comunitarista, uma vez que não apresenta um programa de mudança na estrutura social e política da sociedade liberal. Ainda assim, MacIntyre faz uma defesa da ética das virtudes e formas de associação comunitária que são imprescindíveis ao exercício das virtudes e ao desenvolvimento do homem, enquanto um animal racional dependente. Estes pontos são apresentados nesse capítulo.
No terceiro, e último capítulo, identificamos como os conceitos de virtudes e de sujeito moral estão caracterizados no pensamento de MacIntyre, a partir das obras Depois da virtude, Justiça de quem? Qual racionalidade? e Dependent Rational Animals, discutindo como as virtudes estão sustentadas teoricamente e como o exercício das virtudes se relaciona com a estrutura da racionalidade prática no âmbito da ação do sujeito moral, e, ainda, identificando como MacIntyre apresenta o caráter de animalidade e vulnerabilidade do ser humano enquanto animal racional e o processo de desenvolvimento e exercício de virtudes que este percorre para se tornar um raciocinador prático independente.