Os estudos historiográficos das últimas décadas têm evidenciado um crescente interesse pelos desdobramentos da relação entre história e literatura. O deslocamento das propostas de ordem econômica para uma ênfase mais cultural e estética colocaram em relevo as diversas formas com as quais os sujeitos passaram a exprimir suas experiências ante o mundo e, consequentemente, a necessidade por novos modelos explicativos da realidade. A partir dos anos 1960/70 a relação entre o discurso histórico e a narrativa ficcional sofreu um considerável ponto de inflexão. Uma leitura atenta de algumas crônicas e romances produzidos à época dão a ver um diálogo crítico com a ideia de verdade e representação, bem como a proposição de uma perspectiva renovada sobre o papel da linguagem, do corpo e da erudição na produção do acontecimento. Não sem propósito, parte considerável dos textos publicados nessa ambiência estão interessados em implodir a noção de obra e promover uma desauratização do literário. Isso porque o período em análise deu vida a uma nova sensibilidade estética e comportamental, configurando-se como momento oportuno de convocação para um debate mais amplo acerca dos projetos de complementaridade entre arte e vida, conceito e conduta, corpo e linguagem, no qual foi possível perceber uma crítica à racionalidade, à noção de técnica, de progresso e das maneiras de pensar o futuro. A partir da obra da escritora Clarice Lispector, produzida como desdobramento desse contexto, pretendemos apresentar história e literatura como gêneros permeáveis, permitindo atenuar e superar a oposição estanque entre documento/fato/verdade x ficção/imaginário. Em que pese os inúmeros estudos críticos e de natureza biográfica sobre a obra da referida escritora, ainda não temos estudos de natureza historiográfica que possam nuançar com perspicácia e apuro teórico-metodológico os liames entre o histórico e o ficcional. Num universo em que o documental e o fictício se misturam, nosso objetivo é lançar novas chaves de interpretação sobre a obra clariceana, dando a ver aspectos até então negligenciados ou apenas timidamente pronunciados. Dessa forma nosso estudo se propõe a analisar de que modo a narrativa clariceana – presente em cartas, entrevistas, crônicas e romances –, ao se defrontar com o caráter fugidio e efêmero da linguagem, problematiza as noções de escrita, sujeito e história. A junção e o movimentar de todas essas fontes na teia da narrativa buscará perscrutar as maneiras com as quais as fontes em apreciação, beneficiando-se das relações dialógicas com o seu tempo, passaram a compor outras geografias e um reduto de novas sensibilidades.