Nesse estudo realizamos uma crítica decolonial da administração fundiária no Piauí e
analisamos como ela tem contribuído para a construção da diferença territorial entre os
diversos segmentos das populações do campo. O recorte temporal foi do último quartel do
século XVII até os dias atuais. Adotamos como base epistêmica o pensamento crítico de
fronteira, que permite o encontro entre perspectivas teóricas dos povos subalternizados, a
exemplo do pensamento decolonial e contra colonial. O ponto de partida para
correlacionar a administração fundiária com a colonialidade foi a formulação de Aníbal
Quijano sobre a instituição da propriedade para controle do território e da natureza como
um dos eixos de controle da reprodução social dentro da matriz colonial de poder. O
delineamento adotado foi a pesquisa etnográfica adaptada para o estudo de organizações
complexas. Utilizamos a triangulação entre a pesquisa bibliográfica, pesquisa documental,
observação participante e realização de entrevistas. Defendemos a tese que o sistema de
administração fundiária não soluciona as demandas dos povos subalternizados porque
tem suas bases fincadas na colonialidade, o que marca seu caráter permanentemente
discriminatório. Analisamos como o sistema de sesmarias contribuiu para a fundação das
diferenças territoriais, ancoradas nas formas de permissões e negações que regularam a
apropriação sobre a terra com base em diferenças raciais/étnicas. O sistema de
sesmarias teve a função de tentar invisibilizar os vínculos territoriais do indígenas e foi a
base para subjetivação da terra como mercadoria. Os povos indígenas e africanos
escravizados tem se insurgido contra as regras fundiárias da sociedade colonialista desde
que esta penetrou no Piauí, no sentido da contra colonização e decolonialidade. A Lei de
Terras de 1850 consolidou a função da terra como mercadoria e impôs a propriedade
fundiária como inquestionável, um marco no apagamento das relações territoriais e a
subalternização do povos do campo. A modernização da propriedade fundiária foi
completada pela individualização da propriedade fundiária no século XX. A grilagem de
terras se apresenta como uma função inerente ao próprio sistema-mundo capitalista
moderno/colonial, e continua agindo na expansão das frentes agrícolas, para a
apropriação sobre a natureza os recursos naturais. A grilagem é protegida pelo Estado
em nome segurança jurídica, do progresso e do desenvolvimento. A administração
fundiária foi se adequando as mudanças do capitalismo. As instituições e normas de
gestão fundiária atuais foram orientadas pelo mito do desenvolvimento, privilegiando a
distribuição da terras para os segmentos falsamente tidos como superiores. As lutas dos
povos e comunidades tradicionais tem forçado mudanças no sentido de aproximar marcos
legais, bases jurídicas conceituais, e estruturas dos órgãos de terra, das suas demandas,
ainda que insuficientes. As ressurgências contra coloniais e decoloniais de identidades
étnico-territoriais ligadas aos povos e comunidades tradicionais amparadas na luta pelo
território, apontam o caminho para a readequação da política agrária e da administração
fundiária. As transformações recentes nas normas federais demonstram que a gestão
fundiária tem sucumbido a subalternização imposta pelas diferenças geopolíticas do
sistema-mundo capitalista moderno/colonial, no sentido de manter diferença no acesso à
terra e ao território. Seja com base nas normas modificadas para amparar a apropriação
sobre a terra, seja pelas lacunas legais ou pela leniência do Estado, o objetivo do sistema,
bem diferente de sua missão formal, é auxiliar o mercado imobiliário a incorporar mais
terras e territórios aos circuitos capitalistas.